População de Matupá (MT) antes do linchamento dos três assaltante: filmagem mostra homem queimado até morrer pedindo perdão para Deus. Foto: Reprodução/TV Record |
Enquanto imagens de linchamentos como o
de Guarujá (SP) rodam a internet, uma pequena cidade do MT convive com estigma
de ter sido palco do caso de maior repercussão até hoje
Linchamentos chamam a
atenção da sociedade quando são filmados. Esta parece ser a conclusão deixada
pelas chocantes cenas de agressão que terminaram com a morte de Fabiane
Maria de Jesus, nesta semana, e também pela filmagem com a morte de três homens
por uma população enfurecida na em Matupá, no Mato Grosso, há quase
25 anos.
Na época, as imagens
de três pessoas queimadas vivas após uma tentativa frustrada de roubo, com um
deles pedindo perdão a Deus enquanto agonizava, rodou o mundo e o Brasil.
Foi ainda alvo de
atenção da Anistia Internacional.
E marcou para sempre
a pequena cidade que vive do garimpo, a quase 700 quilômetros de Cuiabá. O caso ficou
conhecido como a “Chacina de Matupá”.
Segundo pesquisa do Núcleo de Estudos da Violência, da Universidade de
São Paulo, nenhum outro caso de linchamento gerou tanta repercussão para o tema
na mídia nacional quanto esse. A pesquisa da USP
engloba o período de 1980 a 2010.
Este intervalo de
tempo é anterior, claro, à onda de linchamentos cujas imagens hoje rodam
as redes sociais,
como as de um adolescente preso a um poste no Rio de Janeiro.
Algumas das cenas do
linchamento no município matogrossense – não as mais fortes, mas ainda sim
impressionantes – podem ser vistas em matéria da afiliada da Rede Record, em
reportagem de 2011 (veja ao final desta matéria).
As imagens estão
suavizadas em preto e branco, mas o vídeo original
era colorido. As partes mais chocantes estão disponíveis apenas em alguns sites da internet.
A chacina
A existência de um
vídeo contendo toda a longa história ocorrida em novembro de 1990 – que se
encerra com os agonizantes 15 minutos finais na vida de um homem, interrogado
pelos algozes com o corpo inteiramente queimado – foi essencial para a enorme
repercussão do caso.
Este homem era
Osvaldo Bachinan, 32 anos. Junto com Ivacir dos Santos, 31 anos e Arci dos
Santos, 28 anos, ambos irmãos, ele invadiu uma casa no pequeno município, hoje
com 14 mil habitantes.
Queriam roubar ouro e joias,
segundo relatos da época. Fizeram refém duas mulheres, uma delas
grávida, e quatro crianças.
Mas a empregada da
casa fugiu e chamou a polícia. Os seis ficaram sob o poder deles por mais de 15
horas, tempo no qual a casa foi cercada pela Polícia Militar e civis, incluindo
pessoas de cidades vizinhas.
Houve então uma longa
negociação para que se rendessem.
A filmagem mostra
que os ladrões estavam temerosos com o que lhes aconteceria se se entregassem.
“Eu te dou garantia,
eu tiro esse pessoal daí. Seria muita covardia matar vocês agora. Pare de
bobagem: você entrega a família e sai vivo”, disse um
policial que negociava a rendição.
Os homens se
renderam, sob a garantia de que seriam levados para outra cidade em uma pequena
aeronave, para serem presos.
Enquanto saíam em
direção ao veículo, era possível ouvir a população gritar “mata, mata, mata”.
A caminho do
aeroporto, porém – e aí as informações se desencontram: a polícia alega que
houve uma tentativa de fuga, já os promotores que se debruçaram sobre o caso
afirmam que os PMs cooperaram para que houvesse o linchamento – os três homens
foram capturados pela população.
Diante de centenas de
pessoas, apanharam muito. Um deles levou um tiro.
Mas o toque final de
crueldade foi o despejo de litros de gasolina nos três, que estavam amarrados.
No vídeo, vê-se que um deles começa a movimentar as pernas furiosamente para se
desvencilhar das chamas.
Depois que o fogo
baixa, ainda se ouvem vários gemidos de dor.
Aí se dá a parte mais
impressionante, quando um dos assaltantes – Osvaldo, semi-acordado – começa a
responder às demandas daqueles que estavam a ponto de lhe tirar a vida. A
câmera foca seu rosto em primeiro plano.
“Pede perdão a
Deus!”, diz um dos homens. “Perdão, Deus, por tudo o que eu fiz", replica
Osvaldo. "Perdoa, meu pai”, completa ainda.
Ele ainda responde
outras coisas e agoniza por 15 minutos até morrer, com a pele toda queimada e
trajando apenas fiapos da roupa não consumida pelo fogo.
Tabu na cidade
“Deste assunto a gente não gosta de falar. A cidade já sofreu demais e agora está superando. Seria muito bom se vocês (jornalistas) ignorassem esse assunto”, disse Heleni Mazzonetto ao Diário de Cuiabá, no ano 2000.
Ela foi a dona de
casa mantida em cárcere privado.
Numa demonstração do
ritmo da justiça brasileira, 17 dos 18 réus envolvidos no caso só foram
julgados em outubro de 2011. Vinte e um anos, portanto, após o
assassinato que foi veiculado por televisões estrangeiras e virou debate
nacional.
Segundo o
Tribunal de Justiça do Mato Grosso, apenas três foram condenados. Um
deles, Valdemir Pereira Bueno, recebeu a maior pena: oito anos de prisão. Ele
aparece no vídeo jogando gasolina nas vítimas.
Réu confesso, disse que se
arrependeu, e que ficou furioso ao reconhecer em um dos homens o
bandido que havia causado terror a ele e à família um dia antes.
Outros sete PMs
envolvidos ainda aguardam julgamento, suspeitos de terem "dado" os
três homens para a turba raivosa.
Em artigo publicado
quatro meses após a tragédia na revista Veja, o
cinegrafista Lenon José Durrewald e autor da gravação, que ganhava a vida
filmando festas e casamentos em
Matupá, deu um relato simplesmente revelador do comportamento coletivo
envolvido nos linchamentos.
Seguem transcritas
algumas de suas palavras à revista.
“O que houve ali foi
uma barbárie, algo que nunca tinha visto antes em minha vida. Muitas pessoas
que estiveram na cidade queriam saber por que não larguei minha câmara e tentei
impedir a tragédia. Na verdade, tentei sim, fui ajudado por uma senhora de 25
anos. Senti medo de ser agredido se tomasse uma atitude mais dura”.
“A maioria das
pessoas observava apenas, enquanto dois ou três homens pegaram a gasolina,
jogaram sobre os assaltantes e atearam fogo. Na memória da multidão estavam
certamente outras inúmeras cenas de violência que todos os dias deixam
cadáveres pelas ruas da cidade. É difícil achar uma família que não tenha uma
história triste de assassinato ou assalto a um parente ou vizinho para contar.
Acho que foi um comportamento inconsciente, como se todo mundo tivesse perdido,
por alguns momentos, a noção da gravidade do que estava acontecendo ali”.
“Ao final, quando os três já estavam mortos, uma outra senhora chegou ao local
e ficou chocada. Chorava e gritava que todos ali eram assassinos. Já de volta
do transe, conscientes do que haviam feito, as pessoas nada disseram. Foram
embora caladas. Firmei a câmera com o sacrifício de quem se sente obrigado a
documentar uma barbaridade que, certamente, o Brasil não conheceria se eu
tivesse simplesmente ido embora. Suava, sentia-me mal e cheguei a desligar a
câmera várias vezes”.
Fonte: Exame.com
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